02 julho 2011

Conversas com Deus e Outros Momentos Ébrios

Carta a Deus
Como foste insensato ao nos desenhares, a nós teus servos, à tua imagem. Será certo o teu arrependimento! Moldaste-nos nas terras argilosas, esculpiste-nos nas rochas basálticas, fundiste-nos no ferro tornando-nos fortes e resistentes. Dotaste-nos da perícia e da inteligência para que, quando nos afrontassem com mais vigor do que o que possuíamos, habilmente nos esquivássemos e sobrevivêssemos. Garantiste-nos a audácia para que ousássemos desafiar os mares revoltosos e os céus tumultuosos. Porém, foi descomedida a tua humildade ao considerares que todos teríamos um coração tão bom como o teu e, talvez por isso, olvidaste-te de construir uma muralha imensamente alta ou de nos agrilhoar com uma corrente suficientemente resistente para que não nos precipitássemos no abismo. Sim, porque esse é o caminho que trilhamos emproados de arrogância e que nos destruirá. Para além do que, embora resistíssemos hirtos à mais dura adversidade, acabamos por nos subjugar ao mais letal dos inimigos: nós próprios!
Rogo-te que não me julgues herege por criticar o teu trabalho mas, sinceramente, desconfio que não fomos das tuas mais conseguidas proezas. Compara outras criações tuas, quer na força das águas de uma catarata, seja na complexidade dos canais do delta de um rio ou no ardil meticuloso da teia de uma aranha. Toma atenção no fino equilíbrio dos ecossistemas. Quem poderia ameaçar a maestria da tua obra senão esse animal, obstinado e descomedido, que acreditaste saber-se cuidar à sua sorte.
Pudesse a humanidade ser redesenhada e certamente seria diferente. Escavarias o mais fundo dos jazigos para extraíres os mais belos diamantes cuja lapidação seria feita, gema a gema, limando cada aresta com rigor. Às pedras que não se apresentassem puras e cristalinas ser-lhes-ia destinado serem destruídas pelo fogo. Na mais precisa das balanças, calibrada pelas tuas próprias mãos, pesarias cada uma para que se pesassem exactamente iguais. Assim seria uma geração perfeita de seres idênticos, duros mas belos, brilhantes e quase imperecíveis.
Quando se mostrassem dignos, com o teu toque de pincel divino colorias em aguarelas paisagens virgíneas que, sensíveis a tal beleza, nenhum dos teus novos pupilos ousaria macular. Inspirá-los-ias para que cuidassem cada flor como se de um jardim inteiro se tratasse.
Para evitar os males da carne, executarias sumariamente a justiça naqueles que ousassem desviar-se do caminho recto de harmonia e bondade. Contudo, não podias sujeitar os teus infantes à míngua e ao infortúnio. Ou à ausência de amor que cria o amargo na alma e que despoleta a raiva. Cuidarias de lhes dar uma boa vida, com alegria, paixão e prosperidade, e os que, ainda assim, demonstrassem ingratidão, fulminarias com uma centelha do teu imenso poder.