02 julho 2011

Conversas com Deus e Outros Momentos Ébrios

Carta a Deus
Como foste insensato ao nos desenhares, a nós teus servos, à tua imagem. Será certo o teu arrependimento! Moldaste-nos nas terras argilosas, esculpiste-nos nas rochas basálticas, fundiste-nos no ferro tornando-nos fortes e resistentes. Dotaste-nos da perícia e da inteligência para que, quando nos afrontassem com mais vigor do que o que possuíamos, habilmente nos esquivássemos e sobrevivêssemos. Garantiste-nos a audácia para que ousássemos desafiar os mares revoltosos e os céus tumultuosos. Porém, foi descomedida a tua humildade ao considerares que todos teríamos um coração tão bom como o teu e, talvez por isso, olvidaste-te de construir uma muralha imensamente alta ou de nos agrilhoar com uma corrente suficientemente resistente para que não nos precipitássemos no abismo. Sim, porque esse é o caminho que trilhamos emproados de arrogância e que nos destruirá. Para além do que, embora resistíssemos hirtos à mais dura adversidade, acabamos por nos subjugar ao mais letal dos inimigos: nós próprios!
Rogo-te que não me julgues herege por criticar o teu trabalho mas, sinceramente, desconfio que não fomos das tuas mais conseguidas proezas. Compara outras criações tuas, quer na força das águas de uma catarata, seja na complexidade dos canais do delta de um rio ou no ardil meticuloso da teia de uma aranha. Toma atenção no fino equilíbrio dos ecossistemas. Quem poderia ameaçar a maestria da tua obra senão esse animal, obstinado e descomedido, que acreditaste saber-se cuidar à sua sorte.
Pudesse a humanidade ser redesenhada e certamente seria diferente. Escavarias o mais fundo dos jazigos para extraíres os mais belos diamantes cuja lapidação seria feita, gema a gema, limando cada aresta com rigor. Às pedras que não se apresentassem puras e cristalinas ser-lhes-ia destinado serem destruídas pelo fogo. Na mais precisa das balanças, calibrada pelas tuas próprias mãos, pesarias cada uma para que se pesassem exactamente iguais. Assim seria uma geração perfeita de seres idênticos, duros mas belos, brilhantes e quase imperecíveis.
Quando se mostrassem dignos, com o teu toque de pincel divino colorias em aguarelas paisagens virgíneas que, sensíveis a tal beleza, nenhum dos teus novos pupilos ousaria macular. Inspirá-los-ias para que cuidassem cada flor como se de um jardim inteiro se tratasse.
Para evitar os males da carne, executarias sumariamente a justiça naqueles que ousassem desviar-se do caminho recto de harmonia e bondade. Contudo, não podias sujeitar os teus infantes à míngua e ao infortúnio. Ou à ausência de amor que cria o amargo na alma e que despoleta a raiva. Cuidarias de lhes dar uma boa vida, com alegria, paixão e prosperidade, e os que, ainda assim, demonstrassem ingratidão, fulminarias com uma centelha do teu imenso poder.


23 abril 2011

Colecção de Contos Eróticos do Dr. Osvaldo

Diz que me amas!
Cheguei a casa já o sol ameaçava nascer. Ele continuava ali, prostrado no sofá, a absorver um qualquer jogo de futebol antigo que tinha gravado no velho VHS. O mesmo jogo que estava a ver quando saí de casa para ir dançar com as amigas. Assim pensava ele.
 Recebeu-me com um beijo chocho nos lábios. Avancei na sua direcção, tirei a roupa e sentei-me no seu colo. Ele ainda tentou desviar o olhar para a televisão, como se o jogo fosse importante, mas não resistiu ao calor do meu envolvente abraço. Beijei-o com a vontade que nunca tive.
Rodopiamos no sofá e senti a língua dele a tentar encontrar o meu clítoris. Impaciente rebentou o fino pedaço de pano que unia a minha tanguinha e pode finalmente abocanhar-me. Oh Deus como eu gostava daquela língua a lamber-me.
 Judiei dele esforçando-me para me conter no primeiro orgasmo para que ele não parasse até eu me vir pela segunda vez. Aí sim gemi de prazer e apertei as pernas contra a cabeça dele obrigando-o a parar. Cheguei ao terceiro penetrada por trás. Mas porque estúpida razão só me vinha com este homem que já não amava. E porque razão insistia para que ele mo dissesse?
Cavalgava-o com violência quando uma lágrima desceu a minha face. Que foi? – Perguntou ele. Respondi um seco “Nada” como se com tanta cumplicidade ele pudesse acreditar. Lendo-me com uma facilidade assustadora disparou: Estiveste a fornicar com outro! Anui com a cabeça irritada com a vulgaridade do termo. Impávido, surpreendeu-me com um “E vieste-te?” Aquele desprezo emocional era atroz.
- Não! Só me venho contigo, diz que me amas!
- Que te amo? Mas como nos podemos amar se nos continuamos a magoar desta maneira?
Chorei desalmadamente quando atingimos o êxtase. Ele limpou-se a um pano do pó esquecido no chão e continuou a ver o jogo.

27 março 2011

Episódios do quotidiano de uma Cidade Sem Lei

GAUDENCIO

Quando Gaudêncio acordou não sabia onde estava. Desconhecia aqueles odores e aqueles sons. Imperava o Silêncio. Mas Gaudêncio sentia um bafo ofegante na sua nuca. Em seu redor, vários suspiros sincronizados. Estavam mais pessoas ali, possivelmente a dormir. Quando tentou mover as mãos apercebeu-se que estava manietado. Supôs que estava assim há bastante tempo pela lancinante dor que lhe percorreu os pulsos quanto tentou libertar-se. Seria, possivelmente, uma abraçadeira plástica ou um troço de arame pois ele sentia-o como uma fina lâmina cravando-lhe a pele.
Alguém tentou levantar-se. Gaudêncio ouviu a borracha da sola do sapato de ténis guinchar quando esta friccionou o chão. Instantes depois, foi arrastado alguns centímetros para a frente pelos pés ao mesmo tempo que um estrondo e o som de uma corrente a arrastar-se ecoaram na sala. Estamos acorrentados uns aos outros, concluiu! De repente todas as pessoas acordaram. Era possível distinguir pelo menos uns doze. Gaudêncio não reconhecia ninguém. Havia berros e gritos! Era indistinguível qualquer conversa. Tacteou em seu redor procurando libertar-se. Porém, foi em vão.
Consegui, gritaram e ouviu-se a corrente arrastar pelo chão libertando os prisioneiros. Gaudêncio ouvia os corpos entorpecidos erguerem-se sobre os pés dormentes e imitou-lhes o gesto. Ignorava se era de noite ou de dia. 
Vamos, por aqui! – Disse alguém. O imenso ruído que a correria ocasionou baralhou Gaudêncio. És cego ou quê, por aqui! A voz permitiu-lhe identificar a direcção certa e ele optou por não denunciar a sua condição de invisual. Por certo deixar-me-ão para trás, pensou.
A custo seguiu o grupo ora tropeçando ora esbarrando numa parede. Com esforço procurou não se deixar ficar para trás. Cruzou-lhe o espírito que ser cego, dada a ocasião, era muito menos desvantajoso do que ser manco. Podia até não acreditar piamente nisto mas o pensamento ajudava-o a não esmorecer a cada pancada ou a cada tropeção.
 Vejam, a rua! – Gaudêncio não via mas sentia a aragem fresca e o cheiro dos malmequeres. Chegado ao pátio agarrou a camisola do fugitivo a sua frente temendo tresmalhar-se. Porém todos começaram a correr e o cego perdeu contacto com o seu guia. Sem se deter continuou a correr alheio aos perigos. O medo tirou-lhe o olfacto, apavorado perdeu o ouvido. Mas correu, correu e correu. Quando as forças lhe pareciam faltar respirava fundo e continuava a correr. De repente, perdeu o chão sob os pés. Ficou gelado de pânico! Sentiu o corpo rebolar ravina abaixo. Os calhaus cravavam-se na pele. Aqui e acolá a cabeça batia violentamente numa ou noutra pedra mais saliente, as roupas rasgavam-se e ficavam presas aos troncos dos arbustos. Por sorte o abismo terminava num extenso areal. Quando se imobilizou sentiu a brisa do mar. Onde estaria?


02 março 2011

Meu Amigo!

O meu coração enternece-se para te escrever estas palavras. A ti, meu querido, que sempre foste carinhoso comigo. Aprendi a amar-te, com uma intensidade tal que, se me separasse de ti, de imediato sentia a tua falta. Lembro-me, ainda, das horas que passavamos olhando-mo-nos nos olhos, em silêncio. Ou quando nos abraçavamos e sentia o teu corpo, suave e macio, junto da minha pele. Como me ouvias desabafar as minhas mágoas ou como dançavamos de alegria ao som das minhas histórias de sucesso. Levei-te ao meu primeiro dia de aulas. A professora quis impedir-te de entrar. Lembras-te? Mas consegui fazê-la entender que eramos inseparáveis e atravessei a porta. Segurava-te pela mão. Estavas sempre lá por mim. Quantas vezes amparaste a minha cabeça enquanto soluçava amargurada com a vida, quantas outras te abracei forte para que não sentisse medo, quantas mais juras de fidelidade te fiz? Porém, há coisas que de tão certas que são, de tão óbvias, nos adormecem a alma. Não porque não te amasse nem sequer por te ter esquecido mas talvez por isso comecei a olhar os outros. Mais modernos e sofisticados. Vivi cada paixoneta dessas ignorando-te, indiferente aos teus sentimentos. Incrivel como não te fizeste ouvir protestar uma unica vez e nem por um segundo ousaste abandonar-me. Vi-te envelhecer. Enquanto as tuas cores aclaravam eu entregava-me aos outros encantada. Eles tinham charme, deves compreender isso. Lembro-me das outras meninas olharem com inveja quando os exibia do meu lado. Sentia-me poderosa, vaidosa! Mas eu também cresci e a todos abandonei. Vieram mais responsbilidades e foi-se o tempo para desfrutar da companhia deles. Menos tu. Que ficavas ali sentado a observar-me enquanto eu devorava matérias e mais matérias. Lembras-te do dia em que entrei na faculdade? Cheguei a casa com as amigas e, como crianças, pulamos sobre a cama. Nem reparei que tinhas perdido um braço. Não interrompi um segundo da minha comemoração para te consolar. Hoje pergunto-me como teria sido se não estivesses em cima da minha cama naquele dia que o meu namorado rompeu comigo. Que destroçou o meu coração, que o abriu ao meio e o deixou despedaçado. O que eu faria se não estivesses lá? Se eu não pudesse abraçar o teu corpo desmembrado. Por isso agradeço o teu perdão, o teu amor e a tua dedicação. Serás sempre o meu preferido, o meu amigo, o meu ursinho de peluche.

23 fevereiro 2011

VIVER!

Por maior que o universo queira ser, nada me deu nunca maior prazer do que VIVER. Por mais evidente que isso seja, até que a morte mo privou, gastei cada momento no gozo de simplesmente existir. No mais simples ESPREGUIÇAR pela manhã, sentindo os músculos alongar, sentindo o friozinho que entra na barriga trespassando o pijama e que teima em subir para deixar entrar a brisa que se escapa por entre as juntas da janela mal calafetada. Ao BOCEJAR, escancarando abusivamente a boca, até ouvir o maxilar ranger de dor. URINAR em alívio, desenhando cada letra do meu nome com o fedorento repuxo dourado. Que alivio largar na branca louça da sanita o quente jacto que corta o ambiente gelado. COZINHAR, de uma forma mais pragmática e menos artística, um rápido pequeno-almoço, equilibrado nos nutrientes, efusivo nas cores, exótico nos aromas, guloso no palato, distribuído aleatoriamente pelo pequeno balcão da kitchenette. DEVORAR com gula cada bocado de comida, sorver ruidosamente cada gota de liquido, apanhar cada migalha do granito preto como se fosse o ultimo pedaço de satisfação, mastigar ruidosamente, alheio a etiquetas e boas maneiras! LIGAR A TV não interessado na programação matinal mas sequioso de barulho, sons que preencham o vazio dos quartos, cores que iluminem as paupérrimas paredes dos corredores. SENTAR, desenhando com o corpo os ângulos rectos que moldam os membros inferiores, costas direitas, olhar directo, compenetrado na tarefa a que me proponho. ESCREVER, deixando a imaginação fluir em cada tecla da velha máquina de escrever, sem vírgulas, porque já falta essa tecla à anciã senhora. Coleccionar palavras, frases, parágrafos, compô-los para que façam algum sentido ou talvez nenhum. LER e reler cada uma das frases escritas, em voz alta com boa dicção, sentir o texto fluir harmoniosamente entre o ouvido e o cérebro sem procurar o sentido mas apenas desfrutando da musicalidade estética da composição. TOMAR UM CAFÉ para recuperar o fôlego e avivar a chama da inspiração. Sentir o gosto amargo que queima a boca, encher os pulmões do agradável aroma exótico. PREGUIÇAR um pouco, deitado no sofá de olhos postos na TV mas com a mente viajando num outro hemisfério qualquer. Fechar os olhos, lentamente, sentir as pálpebras colarem uma na outra. DORMIR com sonoro ressonar fundindo o corpo com o cabedal do maple, sentindo a saliva esquivar-se da boca pelo canto como um bebé a quem os dentes pedem para romper as gengivas. SONHAR com o mais impossível e inconcretizavel dos desejos, lascivo e erótico, capaz envergonhar qualquer meretriz de tão refinada luxúria que se compõe. CONCRETIZÁ-LO sem pudor indiferente aos moralismos, nem que seja escrevendo-o numa página branca que possa inspirar os mais audazes mas menos inventivos. Eis o ORGASMO de criar, explorar o intelecto até ao limite para inovar e trazer o prazer aos que por ele anseiam. ACORDAR em sobressalto aliviado pela realidade ser um porto seguro que acalma a nossa alma naufragada pelos mares revoltosos do pensamento livre. FUGIR em alvoroço porta fora dessa segurança rumo ao desconhecido, embriagado pelo disparo de adrenalina e pela vontade em conhecer novas sensações. SENTIR a brisa do mar e o cheiro a maresia típicos das aldeias piscatórias. CORRER livre pela praia de pés descalços deixando efémeras pegadas no areal. MERGULHAR nas gélidas águas do Atlântico que espumam ao serem arremessadas contra as rochas pela força da ondulação. DESPIR as desconfortáveis vestes molhadas revelando o belo corpo esculpido por mão divina e alimentado pelas forças da natureza, perfeita obra de arte digna das mais belas pinturas e esculturas renascentistas. ACARICIAR com as faces das mãos o belo falo que se erecta aumentando de volume ao compasso do toque. GOZAR de prazer ejaculando o sémen sobre os grãos dourados da areia da praia empestando o ar com o seu cheiro enjoativo. VESTIR um robusto roupão turco quente e macio recuperando o calor no corpo e na alma. REGRESSAR a casa qual filho pródigo perdido na maldição do vicio e da imoralidade recebido no seio dos que o amam em festa e regozijo. FESTEJAR com vinho e iguarias em tal excesso que Baco invejaria tal comezaina. RECUPERAR das ressacas do quotidiano com caldos de tranquilidade e paz de espírito. AMAR os que me acompanham na diária resistência à adversidade e que retribuem com amor. DAR graças pelas coisas boas, perdoar as ofensas, esquecer os arrependimentos. FECHAR o livro da vida com a certeza que fui um homem com valor, amado e idolatrado mas também em momentos odiado, acusado de perversidade e imoralidade, com a certeza porém que cada momento desta vida valeu a pena viver e os viveria a todos quantas vezes mo fosse permitido.

16 fevereiro 2011

Episódios do quotidiano de uma Cidade Sem Lei

Susan Molly

Susan Molly empurrou a velha porta de madeira do quarto do motel. O corpo magro e exausto arrastou-se sobre a carpete imunda. Na penumbra, só se distinguia o fumo que saía de um cigarro pousado num cinzeiro sobre o chão. Susan não estranhou o silêncio e só se deteve quando tropeçou no corpo inerte do companheiro. O seu mais íntimo temor era que estivesse morto. Chamou-o, ao mesmo tempo que lhe abanava os ombros, e o homem moveu-se. Apesar dele ser a causa de tudo o que de mal lhe tinha acontecido no seu quarto de século de vida ficou aliviada de ainda estar vivo. O homem teve uma convulsão e vomitou abundantemente aumentando a poça nauseabunda junto a ele. Susan amava-o e cuidou dele, mais uma vez. Há cinco anos que era assim.
Susan tinha dezanove anos quando o charmoso motoqueiro parou a motocicleta junto à paragem do autocarro. Ela sempre se sentiu atraída pelos Bad Boys. Susan não esquece esse dia nem lamenta a perda dos livros da escola que deixou no receptáculo do lixo. Trocou a a promissora carreira na advocacia pela aventura e jamais se arrependeu. Nem o hematoma no olho direito que o último cliente da noite lhe fez a fazia reconsiderar. Amava tanto aquele homem que se dispunha a morrer por esse amor se tal lhe fosse solicitado. Foi também por amor que aceitou sempre, sem hesitar, aventurar-se nas arrojadas propostas do amante. Deixara-se levar pelas descargas descontroladas de adrenalina e perdeu por completo o senso moral do certo ou errado. Roubou, agrediu e até matou. O arrependimento não lhe tirava o sono. Miss Molly já não era a princesa educada pelas leis da igreja que os pais lhe ensinaram. Pelo contrário, transformou-se na vil bruxa má dos contos de encantar que ouvira na infância. Mas o pior de tudo era que estava satisfeita. Vivia a vida que tinha escolhido no submundo podre dos subúrbios da cidade.
Quando ficou sozinha, dada a prisão do marido, Susan não teve coragem de agir por sua conta. Faltava-lhe o músculo que a amparava na hora de fazer o mal. Contudo, ela recusou ceder à provação e, numa noite, apanhou um taxi para uma certa rua da cidade. Desconhecia o nome! “Para onde há gajas a atacar!” Disse para o taxista de maneira que este não tivesse dúvidas. Rangeu os dentes. Se ele estivesse ali o motorista iria passar um mau bocado. Mais uma vez, faltou-lhe a coragem. Foi com raiva que saiu do carro e com raiva que atendeu o primeiro cliente. E com a mesma raiva sai todas as noites do quarto do motel para trabalhar, assim ela lhe chama. É o sustento da casa!



14 fevereiro 2011

Dia de São Valentim


Encurta-se o mês! Empolgados, os amantes excedem-se nas caricias e procuram com frenesi encontrar o presente certo para a cara-metade. São os adolescentes que, sem pudor, se beijam nos bancos de jardim, os jovens noivos que se declaram presenteando as amadas com uma bela jóia, mas também os recém-casados celebrando a felicidade e os maduros casais que partilham cumplicidade e afecto. Até as crianças, na mais pura meiguice, entregam lembranças a quem gostam. Foi assim que recebi o meu primeiro presentinho de S. Valentim. A menina das sardas da carteira da frente surpreendeu-me no átrio da escola primária durante o recreio com aquela medalha. Uma menina em prata que deveria ser colocada pendendo no meu pescoço. Guardei a jóia e usei-a cada minuto da minha vida. Sem uma palavra, sem algum gesto ou olhar maldoso, vi-a fazer-se mulher à medida que, sempre juntos, fomos crescendo, adolescentes, jovens, adultos, colegas nos estudos, colegas no trabalho. Sem um beijo, sem um toque, sem uma insinuação vi nossos corpos ganharem estatura e estrutura cada dia. Se a desejei? Sim! Sempre a desejei. Do mais platónico sentimento ao mais despudorado pensamento sempre a cobicei. Mas quis o destino que nossos caminhos de tão perto que se trilhavam permanecessem paralelos e nunca se encontrassem. Julguei-me não correspondido na minha devoção e aceitei a minha sorte fazendo-me casto.
 Vesti fato e gravata para ver o meu melhor amigo casar. Recordo-me assim vestido quando a conheci no primeiro de aulas, ridiculamente destoando dos outros gaiatos de jeans e sapatilhas. De alguma forma surpreendi-me por não figurar do lado do noivo. Preferi confiar no seu inegável bom senso na escolha do padrinho a atormentar-me de ciúme. Mas tormentos eram do que a minha alma transbordava.
A menina de sardas era, talvez, a mais bela noiva a quem aquela igreja abrira portas. Segui o belo cortejo com o olhar até o pai a entregar ao noivo no altar. A lindíssima silhueta resplandecia nas vestes angelicais primorosamente escolhidas. Mas apesar de permanecer discreto era impossível não reparar no menino de prata que destoava do belo cordão de ouro que lhe ornamentava o pescoço. Segurando a minha medalha entre o polegar e o indicador hesitei em anunciar ao mundo os meus sentimentos. Ao invés, olhei uma estatueta ao acaso e reformulei os meus votos de castidade a S. Valentim. Jamais arruinaria o casamento do meu melhor amigo de semelhante forma.





01 fevereiro 2011

Lições de Economia para tempos de Crise - Aula 2

Dinheiro não traz felicidade! Podemos tecer várias considerações acerca desta frase por todos vós, caros leitores, conhecida! Haverá quem concorde ou discorde. Contudo, poucos terão a ousadia de discordar de antítese deste conceito. Quem já passou por dificuldades financeiras sentiu na pele essa sensação. Por dificuldades entenda-se que não me refiro, necessariamente, à pobreza. Até porque o dinheiro faz bem mais falta aqueles a quem fez as maiores promessas. Será este o nosso ponto de partida. Enriquecer sim, não porque ser rico é sinónimo de felicidade mas porque não o ser é, com quase a mais absoluta das certezas, sinal de infelicidade.
Mas como quantificar a riqueza? Esqueçam os números milionários do totoloto ou os valores astronómicos da dívida pública. Nem tão pouco se comparem ao salário do primeiro-ministro ou aos prémios anuais dos administradores das grandes empresas. Está na vossa natureza (de outra forma não desejariam ficar ricos). Se têm 10 gastam 11, se têm 50 gastam 55 e se têm 100 gastam 150. É quase certo que se vos derem 1000 vão eventualmente gastar 1500. Se têm predisposição natural para a poupança então não é riqueza que ambicionam e ser-vos-á certamente garantido amealharem alguns dinheiros durante a vida. Mas ser rico é ter sempre o suficiente para se gastar. Não vou ser original a dizê-lo, rico não é quem poupa mas quem gasta.
Garantida essa preocupação: ter sempre um pouco mais do que se vai gastar até nos poderá manter longe do estado de felicidade que almejamos atingir. Mas uma coisa é certa! Não termos de nos preocupar com dinheiro permite-nos ocupar o tempo a canalizar as nossas energias na busca desse objectivo. Ainda que “estarmos ricos” não nos aproxime pelo menos permite que avancemos pelos caminhos que buscam a felicidade.
Antes de saber quantos dígitos tem de ter na conta bancária tem de se saber qual é o estilo de vida que considera satisfatório. Fica a dúvida: porque hei de me contentar com um Mercedes se posso comprar um Ferrari? Eis a resposta: Para que há-de comprar um Ferrari quando apenas tem garagem para um Mini? Balanceando cada decisão de acordo com o nível de conforto desejado sentir-se-á rico muito antes de o seu vizinho invejar a sua conta bancária. Seguindo estas premissas atingirá, sem qualquer dúvida, a felicidade e a riqueza desejadas!

15 janeiro 2011

Conversas com Deus e Outros Momentos Ébrios!

Crónicos Remorsos
Encostado ao balcão, a mão esquerda sustentava-lhe a testa enquanto mantinha cativo pelo olhar mais um copo de aguardente. Creio que de outra forma a cabeça caíria desamparada sobre o granito frio que encimava a bela peça de mobiliário. Estávamos num espaço já antigo que, apesar das paredes escuras e do cheiro a mofo, tinha muita classe. Tinha sido cabaret em tempos idos. Sentei-me ao lado dele consciente que me ia estragar mais uma noite. Mesmo assim tinha a obrigação de me sentar.
- Sabes, disse-me ele ainda antes de eu ter tido tempo de me sentar no banco alto, sabes quem eu sou?  Já ninguém me conhece!
- Claro que sei. Além de que foste capa de jornal, todas as pessoas no bairro te conhecem.
- Leste o jornal? - Continuou ele, com o mesmo assunto de sempre, maçador de tão ébrio que sempre está. Um desperdicio, um homem galante e bem-falante entregue ao repetitivo lamentar de um passado que não pode emendar. - Sabes o que fiz? Sabes? Sabes por que o fiz? – Insistiu ele como se eu não soubesse a resposta, ou tão pouco quisesse ouvi-la da boca dele.
O homem segurou o copo com a mão direita, precocemente envelhecida, e bebeu-o de um só trago. Pediu outra bebida! Não me ofereceu como em outros tempos em que, apesar se eu sempre recusar, insistia para que bebesse com ele. Agora já não oferecia. Também já não bebia da garrafa especial que o barman escondia em baixo do balcão. Também não bebia da mais barata. Bebia de uma qualquer!
- Matei o meu filho, matei a minha mulher! – Gritou alto para que todos no bar o ouvissem. Mas os poucos clientes que ainda frequentavam aquela espelunca nem reagiram. Só o velho cão que se confundia com o tapete à entrada da porta levantou, timidamente, a cabeça.
- Quis-me matar também. Vê, vê bem! - Virou a cabeça para trás exibindo a face direita completamente desfigurada. Uma figura monstruosa que eu já tinha visto vezes sem conta mas que ele não se cansava de me mostrar. – Sou tão inutil que nem fui capaz acabar com o meu sofrimento. Levei a minha familia à miséria. Perdi Tudo...
Perdeu também os sentidos! Tentei reanimá-lo:
-Acorda Pai! Vai para casa descansar. Eu e mãe estamos à tua espera. Até lá cuidarei de ti. Acorda!

09 janeiro 2011

Episódios do quotidiano de uma Cidade Sem Lei

A Naifa

Que passado escondia aquela faca? – Perguntavam os infelizes a quem o destino obrigava a passar naquele beco. Sim. Disse-o bem! Porque ninguém passava ali sem ser obrigado. Eram as traseiras de um prédio devoluto no pior bairro da cidade. A naifa, como os dali lhe chamavam, agarrada pelo cabo de madeira ao ferrugento arame do estendal do primeiro andar, teimava não baloiçar ao sabor do vento. Um homem alto poderia apanha-la com um valente salto. Mas os que ali passavam não estavam para acrobacias. Faziam a travessia do pátio ora silenciosos e cabisbaixos ora gemendo como quem passa por um sofrimento atroz.
Mas alguns havia que conheciam o passado da naifa desde os primeiros dias que se viu útil, desfazendo em febras e costeletas porcos inteiros, ou preparando bifes do lombo para os melhores restaurantes da cidade.
Quando o seu dono, hábil açougueiro, casou a filha, a naifa trabalhou dia e noite desmanchando cabritos e vitelos que haviam de satisfazer a gula dos convivas da bela festa. Vieram os grandes retalhistas de carne para a cidade e o negócio faliu, o talhante investiu todo o capital no ramo da hotelaria. A sua naifa foi com ele. Muitos lembrar-se-ão dela, manejada com destreza, cortando a hortaliça da sopa ou picando as cebolas e os alhos dos refogados. A vida próspera mudou os hábitos do homem que se entregou aos prazeres da luxúria e da cobiça. E quando as mesas de refeição deram lugar às mesas de jogo a naifa saiu da cozinha para debaixo do pano verde do poker. Não poucos, batoteiros ou simplesmente idiotas, acabaram os jogos mais cedo temendo sentir a lâmina cravada no pescoço. Ainda assim foram muitos os que desafiaram o medo e se endividaram naquele antro. Foram esses que, acordados a meio da noite, imploraram pelas famílias subjugados pelo temor.
Quem olhava a naifa agora, abandonada para ser corroída pelas intempéries, não podia adivinhar tal passado.
Sem o saber, muitos conhecem o ultimo episódio da história da naifa. Há quem guarde fotos dela, ensanguentada, quando no derradeiro momento esventrou o útero da adúltera esposa fecundado por mortal inimigo. Foi com um grito que o vil homem se separou da sua naifa às portas do cárcere, desarmado pelo guarda que a atirou com desprezo pelo ar. Mas, com capricho, não quis ficar esquecida num canto escuro qualquer e ficou ali, orgulhosa, para todos a verem.



04 janeiro 2011

Conversas com Deus e outros momentos Ébrios!

A Derradeira Viagem!

Ficava para trás a invicta quando o taxista ligou o auto-rádio do seu bólide. Esperava-o uma longa viagem até à capital. Mas a lonjura da corrida seria claramente compensatória. Talvez por isso não conseguisse esconder um leve sorriso na face.
- Senhor, que caminhos são estes por onde me levas? – Sussurrou o passageiro no banco de trás.
- Então caro amigo, é a auto-estrada do norte. Mas que outro caminho poderia ser para o levar a Lisboa. - Retorquiu espantado o motorista.
Mas a resposta pareceu não satisfazer.
 - Senhor, qual será o meu destino?
 - Lisboa, ora essa! Não foi o que me solicitou?
O estranho homem parecia indiferente às palavras do taxista. Parecia abstraído como se pregasse ou rezasse. O taxista pensou em ignorá-lo mas a ladainha insistente começava incomodá-lo. Aumentou o volume do rádio, o destino ainda se afigurava longínquo.
 - Sei que tudo fiz para não te reconhecer no meu seio mas, a vida sem ti é demasiadamente vazia. Desse modo prefiro ter-te a duvidar de ti, acreditar nos teus ensinamentos e guiar-me por eles. Ainda que suspeite que estão viciados pelas mãos dos homens, moldados a imagem deles para servir outros propósitos que não aqueles que por ti escreveram. Bem sei que exigias mais de mim do que te dei. Humildemente reclamarei meu perdao junto de ti.
O taxista fez um derradeiro esforço para interpelar o viajante mas sem sucesso. Julgou-o esquizofrénico dialogando com uma qualquer personagem do seu imaginário sentada a seu lado. Apesar de tudo o homem parecia inofensivo pelo que a viagem continuou sem percalços.
- Nesta hora que me confesso e entrego a ti rogo-te que encontre a paz que sempre procurei e nesse obrigado antecipado te confesso todo o meu amor e dedicação.
Que criatura demente, pensou o condutor.
- Pare aí.
- Pare aí! – Vociferou o homem quando o táxi se aproximava do fim de um viaduto.
- Fico aqui.
O taxista não se conteve a lançar uma provocação.
- Oh amigo estou-lhe a fazer por metade do preço porque a corrida para dois é mais cara.
Logrou, rapidamente, em obter resposta.
- Quem me acompanha pode nunca te dar o que mereces mas nunca te vai faltar com o que precisas.
Dito isto, o homem balançou o seu corpo sobre o corrimão lançando-se no abismo em direcção ao seu destino final.