15 janeiro 2011

Conversas com Deus e Outros Momentos Ébrios!

Crónicos Remorsos
Encostado ao balcão, a mão esquerda sustentava-lhe a testa enquanto mantinha cativo pelo olhar mais um copo de aguardente. Creio que de outra forma a cabeça caíria desamparada sobre o granito frio que encimava a bela peça de mobiliário. Estávamos num espaço já antigo que, apesar das paredes escuras e do cheiro a mofo, tinha muita classe. Tinha sido cabaret em tempos idos. Sentei-me ao lado dele consciente que me ia estragar mais uma noite. Mesmo assim tinha a obrigação de me sentar.
- Sabes, disse-me ele ainda antes de eu ter tido tempo de me sentar no banco alto, sabes quem eu sou?  Já ninguém me conhece!
- Claro que sei. Além de que foste capa de jornal, todas as pessoas no bairro te conhecem.
- Leste o jornal? - Continuou ele, com o mesmo assunto de sempre, maçador de tão ébrio que sempre está. Um desperdicio, um homem galante e bem-falante entregue ao repetitivo lamentar de um passado que não pode emendar. - Sabes o que fiz? Sabes? Sabes por que o fiz? – Insistiu ele como se eu não soubesse a resposta, ou tão pouco quisesse ouvi-la da boca dele.
O homem segurou o copo com a mão direita, precocemente envelhecida, e bebeu-o de um só trago. Pediu outra bebida! Não me ofereceu como em outros tempos em que, apesar se eu sempre recusar, insistia para que bebesse com ele. Agora já não oferecia. Também já não bebia da garrafa especial que o barman escondia em baixo do balcão. Também não bebia da mais barata. Bebia de uma qualquer!
- Matei o meu filho, matei a minha mulher! – Gritou alto para que todos no bar o ouvissem. Mas os poucos clientes que ainda frequentavam aquela espelunca nem reagiram. Só o velho cão que se confundia com o tapete à entrada da porta levantou, timidamente, a cabeça.
- Quis-me matar também. Vê, vê bem! - Virou a cabeça para trás exibindo a face direita completamente desfigurada. Uma figura monstruosa que eu já tinha visto vezes sem conta mas que ele não se cansava de me mostrar. – Sou tão inutil que nem fui capaz acabar com o meu sofrimento. Levei a minha familia à miséria. Perdi Tudo...
Perdeu também os sentidos! Tentei reanimá-lo:
-Acorda Pai! Vai para casa descansar. Eu e mãe estamos à tua espera. Até lá cuidarei de ti. Acorda!

09 janeiro 2011

Episódios do quotidiano de uma Cidade Sem Lei

A Naifa

Que passado escondia aquela faca? – Perguntavam os infelizes a quem o destino obrigava a passar naquele beco. Sim. Disse-o bem! Porque ninguém passava ali sem ser obrigado. Eram as traseiras de um prédio devoluto no pior bairro da cidade. A naifa, como os dali lhe chamavam, agarrada pelo cabo de madeira ao ferrugento arame do estendal do primeiro andar, teimava não baloiçar ao sabor do vento. Um homem alto poderia apanha-la com um valente salto. Mas os que ali passavam não estavam para acrobacias. Faziam a travessia do pátio ora silenciosos e cabisbaixos ora gemendo como quem passa por um sofrimento atroz.
Mas alguns havia que conheciam o passado da naifa desde os primeiros dias que se viu útil, desfazendo em febras e costeletas porcos inteiros, ou preparando bifes do lombo para os melhores restaurantes da cidade.
Quando o seu dono, hábil açougueiro, casou a filha, a naifa trabalhou dia e noite desmanchando cabritos e vitelos que haviam de satisfazer a gula dos convivas da bela festa. Vieram os grandes retalhistas de carne para a cidade e o negócio faliu, o talhante investiu todo o capital no ramo da hotelaria. A sua naifa foi com ele. Muitos lembrar-se-ão dela, manejada com destreza, cortando a hortaliça da sopa ou picando as cebolas e os alhos dos refogados. A vida próspera mudou os hábitos do homem que se entregou aos prazeres da luxúria e da cobiça. E quando as mesas de refeição deram lugar às mesas de jogo a naifa saiu da cozinha para debaixo do pano verde do poker. Não poucos, batoteiros ou simplesmente idiotas, acabaram os jogos mais cedo temendo sentir a lâmina cravada no pescoço. Ainda assim foram muitos os que desafiaram o medo e se endividaram naquele antro. Foram esses que, acordados a meio da noite, imploraram pelas famílias subjugados pelo temor.
Quem olhava a naifa agora, abandonada para ser corroída pelas intempéries, não podia adivinhar tal passado.
Sem o saber, muitos conhecem o ultimo episódio da história da naifa. Há quem guarde fotos dela, ensanguentada, quando no derradeiro momento esventrou o útero da adúltera esposa fecundado por mortal inimigo. Foi com um grito que o vil homem se separou da sua naifa às portas do cárcere, desarmado pelo guarda que a atirou com desprezo pelo ar. Mas, com capricho, não quis ficar esquecida num canto escuro qualquer e ficou ali, orgulhosa, para todos a verem.



04 janeiro 2011

Conversas com Deus e outros momentos Ébrios!

A Derradeira Viagem!

Ficava para trás a invicta quando o taxista ligou o auto-rádio do seu bólide. Esperava-o uma longa viagem até à capital. Mas a lonjura da corrida seria claramente compensatória. Talvez por isso não conseguisse esconder um leve sorriso na face.
- Senhor, que caminhos são estes por onde me levas? – Sussurrou o passageiro no banco de trás.
- Então caro amigo, é a auto-estrada do norte. Mas que outro caminho poderia ser para o levar a Lisboa. - Retorquiu espantado o motorista.
Mas a resposta pareceu não satisfazer.
 - Senhor, qual será o meu destino?
 - Lisboa, ora essa! Não foi o que me solicitou?
O estranho homem parecia indiferente às palavras do taxista. Parecia abstraído como se pregasse ou rezasse. O taxista pensou em ignorá-lo mas a ladainha insistente começava incomodá-lo. Aumentou o volume do rádio, o destino ainda se afigurava longínquo.
 - Sei que tudo fiz para não te reconhecer no meu seio mas, a vida sem ti é demasiadamente vazia. Desse modo prefiro ter-te a duvidar de ti, acreditar nos teus ensinamentos e guiar-me por eles. Ainda que suspeite que estão viciados pelas mãos dos homens, moldados a imagem deles para servir outros propósitos que não aqueles que por ti escreveram. Bem sei que exigias mais de mim do que te dei. Humildemente reclamarei meu perdao junto de ti.
O taxista fez um derradeiro esforço para interpelar o viajante mas sem sucesso. Julgou-o esquizofrénico dialogando com uma qualquer personagem do seu imaginário sentada a seu lado. Apesar de tudo o homem parecia inofensivo pelo que a viagem continuou sem percalços.
- Nesta hora que me confesso e entrego a ti rogo-te que encontre a paz que sempre procurei e nesse obrigado antecipado te confesso todo o meu amor e dedicação.
Que criatura demente, pensou o condutor.
- Pare aí.
- Pare aí! – Vociferou o homem quando o táxi se aproximava do fim de um viaduto.
- Fico aqui.
O taxista não se conteve a lançar uma provocação.
- Oh amigo estou-lhe a fazer por metade do preço porque a corrida para dois é mais cara.
Logrou, rapidamente, em obter resposta.
- Quem me acompanha pode nunca te dar o que mereces mas nunca te vai faltar com o que precisas.
Dito isto, o homem balançou o seu corpo sobre o corrimão lançando-se no abismo em direcção ao seu destino final.