09 janeiro 2011

Episódios do quotidiano de uma Cidade Sem Lei

A Naifa

Que passado escondia aquela faca? – Perguntavam os infelizes a quem o destino obrigava a passar naquele beco. Sim. Disse-o bem! Porque ninguém passava ali sem ser obrigado. Eram as traseiras de um prédio devoluto no pior bairro da cidade. A naifa, como os dali lhe chamavam, agarrada pelo cabo de madeira ao ferrugento arame do estendal do primeiro andar, teimava não baloiçar ao sabor do vento. Um homem alto poderia apanha-la com um valente salto. Mas os que ali passavam não estavam para acrobacias. Faziam a travessia do pátio ora silenciosos e cabisbaixos ora gemendo como quem passa por um sofrimento atroz.
Mas alguns havia que conheciam o passado da naifa desde os primeiros dias que se viu útil, desfazendo em febras e costeletas porcos inteiros, ou preparando bifes do lombo para os melhores restaurantes da cidade.
Quando o seu dono, hábil açougueiro, casou a filha, a naifa trabalhou dia e noite desmanchando cabritos e vitelos que haviam de satisfazer a gula dos convivas da bela festa. Vieram os grandes retalhistas de carne para a cidade e o negócio faliu, o talhante investiu todo o capital no ramo da hotelaria. A sua naifa foi com ele. Muitos lembrar-se-ão dela, manejada com destreza, cortando a hortaliça da sopa ou picando as cebolas e os alhos dos refogados. A vida próspera mudou os hábitos do homem que se entregou aos prazeres da luxúria e da cobiça. E quando as mesas de refeição deram lugar às mesas de jogo a naifa saiu da cozinha para debaixo do pano verde do poker. Não poucos, batoteiros ou simplesmente idiotas, acabaram os jogos mais cedo temendo sentir a lâmina cravada no pescoço. Ainda assim foram muitos os que desafiaram o medo e se endividaram naquele antro. Foram esses que, acordados a meio da noite, imploraram pelas famílias subjugados pelo temor.
Quem olhava a naifa agora, abandonada para ser corroída pelas intempéries, não podia adivinhar tal passado.
Sem o saber, muitos conhecem o ultimo episódio da história da naifa. Há quem guarde fotos dela, ensanguentada, quando no derradeiro momento esventrou o útero da adúltera esposa fecundado por mortal inimigo. Foi com um grito que o vil homem se separou da sua naifa às portas do cárcere, desarmado pelo guarda que a atirou com desprezo pelo ar. Mas, com capricho, não quis ficar esquecida num canto escuro qualquer e ficou ali, orgulhosa, para todos a verem.



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