27 março 2011

Episódios do quotidiano de uma Cidade Sem Lei

GAUDENCIO

Quando Gaudêncio acordou não sabia onde estava. Desconhecia aqueles odores e aqueles sons. Imperava o Silêncio. Mas Gaudêncio sentia um bafo ofegante na sua nuca. Em seu redor, vários suspiros sincronizados. Estavam mais pessoas ali, possivelmente a dormir. Quando tentou mover as mãos apercebeu-se que estava manietado. Supôs que estava assim há bastante tempo pela lancinante dor que lhe percorreu os pulsos quanto tentou libertar-se. Seria, possivelmente, uma abraçadeira plástica ou um troço de arame pois ele sentia-o como uma fina lâmina cravando-lhe a pele.
Alguém tentou levantar-se. Gaudêncio ouviu a borracha da sola do sapato de ténis guinchar quando esta friccionou o chão. Instantes depois, foi arrastado alguns centímetros para a frente pelos pés ao mesmo tempo que um estrondo e o som de uma corrente a arrastar-se ecoaram na sala. Estamos acorrentados uns aos outros, concluiu! De repente todas as pessoas acordaram. Era possível distinguir pelo menos uns doze. Gaudêncio não reconhecia ninguém. Havia berros e gritos! Era indistinguível qualquer conversa. Tacteou em seu redor procurando libertar-se. Porém, foi em vão.
Consegui, gritaram e ouviu-se a corrente arrastar pelo chão libertando os prisioneiros. Gaudêncio ouvia os corpos entorpecidos erguerem-se sobre os pés dormentes e imitou-lhes o gesto. Ignorava se era de noite ou de dia. 
Vamos, por aqui! – Disse alguém. O imenso ruído que a correria ocasionou baralhou Gaudêncio. És cego ou quê, por aqui! A voz permitiu-lhe identificar a direcção certa e ele optou por não denunciar a sua condição de invisual. Por certo deixar-me-ão para trás, pensou.
A custo seguiu o grupo ora tropeçando ora esbarrando numa parede. Com esforço procurou não se deixar ficar para trás. Cruzou-lhe o espírito que ser cego, dada a ocasião, era muito menos desvantajoso do que ser manco. Podia até não acreditar piamente nisto mas o pensamento ajudava-o a não esmorecer a cada pancada ou a cada tropeção.
 Vejam, a rua! – Gaudêncio não via mas sentia a aragem fresca e o cheiro dos malmequeres. Chegado ao pátio agarrou a camisola do fugitivo a sua frente temendo tresmalhar-se. Porém todos começaram a correr e o cego perdeu contacto com o seu guia. Sem se deter continuou a correr alheio aos perigos. O medo tirou-lhe o olfacto, apavorado perdeu o ouvido. Mas correu, correu e correu. Quando as forças lhe pareciam faltar respirava fundo e continuava a correr. De repente, perdeu o chão sob os pés. Ficou gelado de pânico! Sentiu o corpo rebolar ravina abaixo. Os calhaus cravavam-se na pele. Aqui e acolá a cabeça batia violentamente numa ou noutra pedra mais saliente, as roupas rasgavam-se e ficavam presas aos troncos dos arbustos. Por sorte o abismo terminava num extenso areal. Quando se imobilizou sentiu a brisa do mar. Onde estaria?


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